26.6.04

Cinco Segundos - Capítulo I: Reflexos Irremediavelmente Atrasados

Olhou para o céu cinzento com indiferença e depois baixou os olhos para a mão ensanguentada. Olhou-a como se não lhe pertencesse, iluminada pelo clarão fugaz de uma descarga laser dos alimentadores em órbita. Largou o estilhaço de metal que segurava e deu-lhe um pontapé que o fez deslizar com um ruído surdo pelo pavimento de betão e desaparecer nas entranhas de uma grelha metálica. Limpou a mão às roupas que cobriam o corpo inerte quase oculto pelas sombras densas do regenerador e afastou-se. Não olhou para trás.

O écran de holovisão estava sujo. Pó e gordura. Não é que tivesse alguma importância no ambiente mal iluminado do bar de segunda, mas ele sempre reparara naqueles pequenos pormenores, era como uma imagem de marca da sua personalidade. Manteve o olhar ausente, desfocado, e pensou em viajar para longe. Se o capturassem desta vez esgotar-se-lhe-iam os anos de vida. Sucessivas condenações, a maior parte à revelia, tinham encurtado a sua vida em alguns anos. E ela já não era muito longa no início, pois a sua família era pobre e nunca pudera comprar anos extra. O seu limite actual eram os 32 anos mas, com o crime que cometera, esse limite deveria reduzir-se para um valor inferior à sua idade actual. Não sentia qualquer disposição para ser desactivado e reciclado, nem possuía talento para desempenhar o papel de adubo hidropónico ou revestimento atérmico de satélite alimentador.
- Não estás com muito bom aspecto. – olhou por cima do ombro: Vinnie, com o sorriso amigável número 3 e óculos de sol Hu-Yang espelhados. Modelo Paz Celestial, reparou; reflectiam tudo com um atraso de cinco segundos: quem olhasse para as suas lentes via o passado imediato, as coisas estúpidas que fizera cinco segundos atrás. Ela devia precisar de alguma coisa.
- Metabólicos não tenho, psicotrópicos mal chegam para mim e qualquer outra coisa tens de pagar.
- Mickie, não sejas mau... Tenho os nervos em franja e os bolsos vazios.
- Existem muitas maneiras de ganhar dinheiro, Vinnie, e o meu nome não é Mike.
- Eu gosto de Mickie.
- Eu não. – levantou-se sem olhar para as lentes que decerto o mostravam sentado e dirigiu-se para a saída. – Põe na minha conta, Sakky.
- A tua conta já está tão grande que nem com o dobro dos anos que tens para viver me pagavas. Sou um filantropo numa sarjeta, é o que sou...
Quanto é o dobro de nada?, pensou.
- Porco sujo, rato das sarjetas, grabber nojento! – berrou Vinnie esganiçadamente.
Disse-lhe adeus com a mão e saiu para a luz do dia coada pelo sujo do céu.

Sistema fechado. O desperdício era o sacrilégio e a reciclagem de tudo a obsessão. Sistema fechado: um mundo inteiro tratado como se de uma nave espacial se tratasse, numa viagem sem fim pelas linhas de força do espaço-tempo. Da natureza restava a raça humana, cercada de cimento simples e polibetão, plástico degradável e madeira de imitação, um caldo venenoso que se alimentava de si mesmo. No celulóide obsoleto e nas ROM's cobertas de pó nas bibliotecas jaziam as cenas mortas de todos os animais e plantas que já não existiam. Pensou nos ruminantes de cultura, informes nos seus tanques de desenvolvimento, mas decidiu não os incluir na categoria de animais: tinham sido demasiado manipulados e modificados para que ainda o fossem. E as recriações das estufas, reles adaptações ao ambiente fechado iluminado à custa de lâmpadas Sunray? Não... eram invenções dos homens, pobres aproximações daquilo que tinham sido os verdadeiros ecossistemas.
Olhou outra vez para o pavimento cinzento da Praça dos Dias Dourados. O vidro do quarto estava cada vez mais sujo, o robot que tratava da sua limpeza devia estar novamente avariado. Porque matara ele Serzenko? Demasiado arrogante. Sim, concluiu, fora isso: ele era demasiado arrogante. Deixou de pensar e armou as suas defesas porque o penteado multicolor que avistou lá embaixo não lhe deixou dúvidas: a Vinnie chata vinha a caminho.

A voz possuía um ligeiro timbre metálico:
- Abre Mickie! Eu sei que estás aí! Não venho cravar-te, desta vez. Juro!
Abriu a porta contrariado, o seu estado de espírito não era o melhor para discutir com Vinnie Smolensk.
O cabelo dela mudara de cor entretanto e apresentava agora dois tons de verde de idêntico mau gosto. Atirou-se-lhe para os braços antes de ele ter tempo para se esquivar.
- Meu pobre gatinho, perdoa-me por te ter chamado todos aqueles nomes...
- Vinnie, não sejas ridícula. Entre nós tudo o que existe é algum sexo ocasionalmente, por isso não me interessam de todo os nomes que me chamaste. E escusas de fingir todo esse afecto que ambos sabemos que não é verdadeiro.
- És um desmancha-prazeres, Mickie... – a estalada apanhou-lhe em cheio a face direita e projectou-a contra a cama.
- Não me chamo Mickie. – puxou-a para cima da cama de poliglass e deitou-se sobre o corpo quente. – Ok, Cleo. Se não é droga que queres, deve ser isto.
- Não me chamo Cleo, – disse Vinnie num sussurro.

Tinha a boca seca e uma aproximação de ressaca entoava-lhe estranhos cânticos aos seus ouvidos. Um cheiro a óxidos metálicos saturava-lhe o olfacto. Estava todo molhado. A rua estava toda molhada. Chovera. Que fazia ele na rua depois de ter adormecido enroscado em Vinnie Smolensk?
Decidiu abrir os olhos definitivamente, convencido de que não estava a sonhar. Aquela roupa não era dele, nem de Vinnie! Sentia-se tonto, mas na noite anterior não tomara ou bebera nada. O beco cheio de escórias e sucatas metálicas era parecido com todos os becos de todo o mundo. Necessitaria de algo mais singular para poder perceber em que sítio se encontrava.
Andou na direcção das luzes fortes da rua próxima, cambaleante. Recomeçou a chover sem aviso, gotas grossas que desfaziam o polibetão num trabalho paciente de anos. Ácidos do céu, como lhe chamava o Bernie Borbulhento. A Álea Verde! Estava na Álea Verde, na parte ocidental do sector Bluebank. Os pequenos restaurantes de rua e os bordéis baratos davam-lhe a atmosfera característica das artérias que constituíam o Sinheaven. Deambulou pela rua apinhada, olhando para tudo sem nada ver, o olhar desfocado pelo mistério que não se desvanecia. Parou repentinamente e saltou como um coelho para uma rua lateral. Não soube se eles o tinham visto, nem esperou para saber, porque o d'head dos capacetes negros dos grabbers podia detectá-lo numa fracção de segundo. O seu ficheiro devia possuir prioridade máxima nas chaves de detecção do sistema da polícia. Continuou a correr por ruas secundárias até o fôlego o abandonar por completo. A tontura voltou, mais forte que antes. Encostou a cabeça a um muro sujo e vomitou. Vomitou muito.

O quarto estava na obscuridade e não se iluminou nem quando activou o controlo manual. Entrou com precaução e com a sua faca idi pronta para tudo. Nada aconteceu porém; o quarto parecia vazio e calmo, com os lençóis amarrotados a desenharem montanhas contra o horizonte luminoso da janela. Encontrou no escuro o painel de controlo do quarto e conseguiu reactivar a iluminação.
Vazio! No meio dos lençóis um reflexo metálico chamou-lhe a atenção. Eram os óculos Hu-Yang de Vinnie, mas a imagem que exibiam não era a sua ao aproximar-se da cama: o rosto que enchia as lentes era brutal e tinha uma expressão de alucinado. Estavam avariados. Pegou neles e examinou-os: uma camada seca de uma substância vermelha escura cobria a haste direita dos óculos espelhados; havia sangue na haste dos óculos! Sangue de Vinnie!